… mas infelizmente levará uma vida para ser dominado. Será?…
Philip Kotler “profetizou” este célebre pensamento aplicado ao marketing clássico há largos anos, numa época em que o conceito “digital” estava longe de sofrer a transformação e as sucessivas revoluções que envolvem actualmente a indústria dos media e da Internet.
O contexto em que se insere a frase original de Kotler atribuia à data um enfoque muito particular no desafio que representava a aprendizagem e o domínio das diferentes técnicas de marketing, num patamar de extrema exigência, ao qual, ainda hoje, qualquer responsável máximo por esta função saberá reconhecer, inegávelmente, o seu devido valor – “Is marketing hard to learn? The good news is that marketing takes a day to learn. The bad news is that it takes a lifetime to master.”.
Embora este “quote” tenha conquistado uma grande popularidade na história desta disciplina, sendo talvez um dos mais citados, são vários os pensamentos associados ao nome de Kotler que, no seu conjunto, continuam a contribuir de forma singular para uma melhor percepção sobre o verdadeiro enquadramento das atribuições do marketing, na perspectiva de alguém que, apesar dos seus 84 anos, continua a observar e a dedicar grande parte da sua vida a estudar e a aprender justamente esta realidade.
Um destes exemplos será, pela sua preponderância aos dias de hoje, a seguinte afirmação – “The good news is that marketing will be around forever. The bad news: It won’t be the way you learned it.” – Com esta nova “premonição”, Philip Kotler responde claramente a dois importantes fenómenos que se verificam actualmente:
- O marketing não “morreu”, contrariamente a muitas opiniões expressas neste sentido em vários artigos e títulos sobre o tema, particularmente quando se aborda o impacto do “digital” sobre esta e outras metodologias de gestão mais convencionais;
- Os conceitos de base à essência tradicional do marketing têm vindo a sofrer influências naturais, inerentes às alterações que afectaram o comportamento humano em contexto de consumo ao longo da última década, onde o “digital” tem vindo a ter um papel claramente disruptivo.
O marketing irá alguma vez morrer?
Em 1967, justamente no ano em que Kotler lançava a sua obra mais emblemática (“Marketing Management – Analysis, Planning and Control”), foi fundada no nosso país a SPM – Sociedade Portuguesa de Marketing (actual APPM), cujo registo legal foi efectuado em nome de “Sociedade Portuguesa de Comercialização (Marketing)”, tendo sido atribuído à expressão “marketing” entre parêntesis um regime de excepção em virtude da mesma não possuir, à data, uma significância clara em Portugal quanto à sua verdadeira atribuição.
Embora o nome original da SPM possa parecer demasiado longínquo da realidade actual, qualquer operação que sustente a criação de um determinado mercado, com toda a sua envolvência de produção e relação, tem na sua génese uma intenção de implementar uma determinada cadeia de valor destinada à criação e obtenção de lucro – É precisamente neste enquadramento que se insere o conceito da Comercialização, onde, obviamente, a função marketing sempre desempenhou um papel determinante.
Mesmo quando abordamos estratégias de marketing sem fins lucrativos; marcas pessoais; movimentos políticos, etc., considera-se que nestes exemplos continua a existir uma clara intenção de “comercializar” algo em concreto, através de uma determinada ideia, opinião ou convicção.
Assim sendo, enquanto o fenómeno da comercialização existir na sua planitude mais simples dificilmente esta área da gestão irá desaparecer. A existência de condições para a comercialização de um produto irá estar sempre dependente de metodologias, processos e práticas subjacentes à sua persuasão e realização de algo em concreto – Poderá equacionar-se a atribuição de uma outra nomenclatura, mas é na raíz deste fenómeno que permanecerá a função marketing na sua expressão mais genuína.
O que é o “Digital”?
Poderemos aplicar a mesma “profecia” de Kotler na apredizagem do “digital”?
Já tenho ouvir dizer que é uma expressão “sexy”, romântica e bastante sedutora, mas obviamente não terá sido por estes atributos que tem vindo a atrair e a ser responsável pelo crescimento de gigantescas indústrias a seus pés.
Quando se fala em “digital”, tenho percebido que por vezes existe uma noção abstrata ou mesmo difusa sobre a sua essência principal. Naturalmente que já não estamos a falar da evolução do código binário e dos primeiros sistemas digitais de sinais no processamento de dados, mas é perceptível haver um distanciamento sobre o racional de base a este fenómeno, por um lado, e, por outro, no esforço de tentar encontrar uma definição clara que o possa resumir fora do conceito que o tornou mais popular (“marketing digital”).
A Cisco tentou em 2013 fazer este exercício e reuniu os resultados num vídeo bastante curioso, intitulado precisamente – What is “Digital”? – apenas demonstrando que, muito dificilmente, haverá uma expressão que seja consensualmente única fora das componentes Web, Mobile, Social Media e Video, talvez porque cada um de nós sente e aborda este “digital” na forma que nos seja mais conveniente ou na experiência que nos proporcione mais valor.
Provavelmente por esta razão o “digital” poderá ser exactamente tudo o que dizem dele, quer na perspectiva individual de cada um, quer, sobretudo, numa visão perfeitamente globalizada, em resultado da soma de todas aquelas partes.
Mas talvez mais importante do que tentar encontrar ou atribuir uma definição única será apreciar a própria evolução do “digital” nos dias de hoje, reflectindo sobre diferentes correntes de abordagem, que embora possam ter no seu limite um fio condutor comum, possuem objectivos distintos aplicados a diferentes áreas do conhecimento:
A Transformação Digital nas Empresas (Digital Transformation of Enterprises)
Processo de mudança no seio das organizações pelo impacto da adopção da tecnologia digital em todos os aspectos da sociedade humana. Não se trata apenas e tão somente de criar um website ou recorrer ao marketing digital, embora esta decisão possa, na maioria dos casos, constituir um primeiro passo com contornos específicos quanto à missão deste projecto.
A Transformação Digital (TD) vai muito mais longe no seu papel reformista, em virtude de implicar a adopção de metodologias que visem claramente encontrar benefícios em toda a estrutura da organização, nomeadamente, ganhos de eficiência, melhoria efectiva de processos e criação de uma identidade e cultura baseada nesta atitude.
As alterações adoptadas em contexto de TD colocam as organizações em melhor posição para compreender determinados mercados de actuação, diferentes ambientes competitivos e, claramente, os seus clientes, sobretudo aqueles que já são nativos “digitais” e que exigem das marcas níveis de serviço compatíveis com os seus hábitos de consumo neste domínio.
A Economia e a Sociedade Digital (Digital Economy / Digital Society)
Engloba todo o enquadramento das actividades económicas e sociais que possam ser potenciadas por via das tecnologias digitais, onde o exemplo mais concreto é o Comércio Electrónico. Mas a Economia e a Sociedade Digital ocupa igualmente um espaço de debate e acórdão junto de organismos de regulação a nível internacional (OCDE, Comissão Europeia, US International Trade Comission, etc.) em virtude de constituir um fenómeno de extrema relevância para o contexto económico, social e político no panorama mundial.
A área económica abrange igualmente todas as indústria de investigação, fabrico e distribuição de produtos e serviços vocacionados para o consumo digital, onde se incluem os grandes operadores de base tecnológica popularmente conhecidos do público em geral e restantes prestadores com ofertas nestes mercados.
As movimentações ocorridas nesta área do “digital” são habitualmente geradoras das principais tendências futuras ao nível da produção, distribuição e consumo, constituindo um indicador precioso sobre o que poderá mudar no mapa da concorrência global e nos hábitos de uso das populações em relação à oferta “digital”.
O Comportamento Digital (Digital Behavior)
Esta abordagem específica do “digital” envolve o esforço da humanidade em estudar, analisar e gerar conhecimento sobre o comportamento humano perante os estímulos digitais, e tem vindo a constituir um dos temas mais abrangentes a nível de estudos de “research” à escala global.
As grandes tendências de pesquisa nesta área têm um enfoque particular no fenómeno “always on” (princípio da conectividade permanente) e no estabelecimento de relações e partilhas associadas aos principais conteúdos que movem as sociedades actuais: Informação; Educação e Entretenimento.
Sem prejuízo de evoluir para outros sub-temas relacionados com o indivíduo enquanto investigador / utilizador / consumidor de meios, aplicações e outras plataformas tecnológicas dentro do seu ecossistema, esta área procura essencialmente caracterizar o nosso comportamento social digital, tendo presente o impacto e a influência do “digital” nas gerações pré e pós Internet, respectivos comportamentos e hábitos adquiridos.
O Marketing Digital (Digital Marketing)
Trata-se da área mais popular do “digital” e abriu um mundo de oportunidades para a prestação de serviços, colocando, sobretudo, a indústria de meios num patamar de oferta outrora impensável, precisamente pelo facto do marketing digital (MD) estar muito associado a um tema de “meios & comunicação”.
Existem grandes desafios na formação técnica e na experimentação prática associada a esta área, por estar, essencialmente, sustentada no funcionar das múltiplas tecnologias ao dispor das marcas, deixando muitas vezes de fora a forma conceptual de ligar estas novas valências adquiridas às componentes estratégias de cada negócio – É neste ponto que deve estar centrado o MD.
Dominar um conjunto de ferramentas é fundamental, mas será ainda mais crítico utilizar estes recursos numa perspectiva de criação de valor holístico efectivo. Todo o potencial do MD continua a ser apenas um meio – Há que provar a sua criação de riqueza para os seus fins e propósitos.
Segundo Marc Pritchard, Global Marketing & Brand Building Officer da Procter & Gamble – “The era of digital marketing is over, it’s almost dead, it’s now just brand building” – Basicamente, este responsável por grandes marcas globais salienta que a preocupação deverá estar, naturalmente, na criação e desenvolvimento de novos estímulos associados à evolução da marca aproveitando todo o potencial da tecnologia disponível.
O enfoque não é tão somente o MD mas a construção de novos territórios da marca num mundo digital – “This is not about digital marketing, it’s about brand building in a digital world. Digital marketing is past, brand building in a digital world is the future…”.
É preciso uma vida inteira para dominar o “Digital”?
Existem várias considerações que podem ajudar este raciocínio:
> O grande volume do investimento das marcas no “digital” está aplicado em conteúdos que dependem de algoritmos, aplicações, plataformas e sistemas de processamento geridos maioritariamente por terceiras entidades. Praticamente toda a tecnologia digital disponível para servir a indústria dos media nem sempre é dominada tecnicamente pelos anunciantes, obrigando a um esforço conjunto nas suas parcerias com prestadores e agentes que comprovem merecer essa confiança;
> A evolução constante desta tecnologia é um desafio extraordinário que coloca barreiras naturais à existência de autoridades (ou “gurus”) que possam ter a capacidade de testar e validar a conformidade de todas as vertentes de um enorme ecossistema dependente de inúmeras variáveis;
> O volume colossal de dados gerados pelo “digital” e o seu elevado grau de complexidade carecem de elevada experiência e prática comprovada para que haja rigor na sua interpretação e criação de conhecimento aplicado, sobretudo, em tomadas de decisão, de modo a justificar precisamente todo o investimento nas várias tecnologias existentes;
> O comportamento em consumo sob influência do “digital” e as alterações de hábitos dependentes destas tecnologias, seja por via dos nativos “digitais” ou dos “emigrantes” no termo, têm vindo a criar novos paradigmas para os quais não existem certezas fiáveis que sustentem estratégias e acções de abordagem com total sucesso.
Perante estas, e outras possíveis evidências, a “profecia” original de Kotler talvez permaneça em aberto por mais algum tempo…